CEOs devem estar preparados para reconsiderar em que indústria a sua empresa opera e em qual estará operando em poucos anos
Há mais de 20 anos, li um livro fantástico, chamado “Only the Paranoid Survive”, do então CEO da Intel, Andrew Grove. No livro, que considero um clássico em gestão e skills gerenciais e de liderança, ele mostra que as empresas devem estar constantemente alertas para mudanças inesperadas, e têm que, muito rapidamente, se adaptar para não desaparecer.
Grove fala em Ponto de Inflexão Estratégico, que pode ser desencadeado por qualquer coisa, seja uma mudança na regulação ou uma inovação tecnológica, à primeira vista, distante do atual “core business” da organização. Quando um Ponto de Inflexão Estratégico é alcançado, as regras comuns dos negócios (o “business as usual”) perdem a validade. No entanto, se gerenciado corretamente, um Ponto de Inflexão Estratégico pode ser uma oportunidade de vencer no mercado e emergir mais forte do que nunca. Essa lição continua mais válida que nunca hoje, com a disrupção digital batendo à porta. As regras do jogo de negócios estão sendo reescritas e as atuais irão desaparecer em breve.
O que estamos vivenciando é a inclusão da digitalização no cerne dos produtos e serviços. O valor da experiência dos usuários está cada vez mais “data centric” e digital. Empresas tradicionais, com negócios sólidos defrontam-se com novas regras, para as quais muitas vezes não estão preparadas. As conhecidas fronteiras entre os setores de indústria estão simplesmente se desmanchando. A própria classificação tradicional das empresas em verticais de negócio tende a perder sentido. Uma Amazon é tanto um varejista online como off-line, agora com a aquisição da Whole Foods. Tem 50% do comércio online e 5% de todo o varejo americano. É também uma empresa de tecnologia, líder em cloud computing. Está operando em logística e concorre com a Netflix. Está entrando forte no mercado de meios de pagamento. Em resumo, a Amazon é um exemplo prático que as atuais fronteiras entre os setores de negócio estão desmanchando.
As empresas dominantes nos diversos setores precisam enfrentar de frente uma nova situação: a concorrência de empresas que começaram prosperando em outros setores. A concorrência já não vem apenas dos competidores tradicionais. O embate entre Amazon e Wal Mart é emblemático deste cenário. Vale a pena ler “Amazon vs. Walmart: Which One Will Prevail?”.
David Bell, professor de Wharton, diz que o offline não está morto, simplesmente está se tornando diferente, com o conceito de omnichannel e para ele “companies that start in the digital world and slowly and surely add offline have been more successful than companies that started in the offline world and added digital”.
A indústria automotiva também está às vésperas de transformações radicais em seus modelos de negócio e desmanche das atuais fronteiras entre setores. A Tesla, por exemplo, é uma empresa automotiva ou de energia? Provavelmente é uma empresa de energia que fabrica carros. Com a combinação de veículos elétricos e autônomos, com adição do crescimento da economia do compartilhar, o conceito de “usar” e não necessariamente “ter”, bem explicado neste vídeo da Singularity University, “Why the Future of Stuff Is Having More and Owning Less”, provavelmente a Tesla vai gerar mais receita dos serviços digitais fornecidos em torno dos veículos que por eles mesmos.
E isso serve para competidores. Em vez de vender veículos autônomos, uma Ford pode disponibilizá-los para levar pessoas do ponto A ao B, com garantias de seguros para eventuais contratempos. Nesse cenário borrado, qual seria a distinção entre uma Ford, uma Uber, uma Localiza e uma Porto Seguro? Que setores colidirão e serão absorvidos por outros?
No novo jogo da sociedade digital, os “core businesses” serão frequentemente redesenhados. Os CEOs devem estar preparados para reconsiderar em que indústria a sua empresa opera e em qual estará operando em poucos anos. Com as empresas se transformando em empresas de tecnologia, pela inclusão da digitalização nos serviços produtos, as competências digitais se tornarão cada vez mais importantes. Um exemplo é a transformação da GE e sua busca por novas competências, bem explicado em “General Electric Builds an AI Workforce”.
As organizações do século 21 serão empresas de tecnologia com foco em algum serviço específico. Um Airbnb é uma empresa de tecnologia com foco em hospedagem de pessoas. Um banco, por exemplo, será uma empresa de tecnologia com foco em serviços bancários e não uma empresa de serviços financeiros com forte área de tecnologia. O texto “Banks need to take on Amazon and Google or die”, do CEO do BBVA, vai direto ao ponto.
O desafio vem de todos os lados, de empresas que estão em outros setores ou de startups que surgem a todo instante. A indústria fonográfica nunca pensou que uma empresa de tecnologia com a Apple fosse ameaça. As empresas de telefonia foram surpreendidas pelo surgimento do Skype e WhatsApp. A indústria hoteleira não prestou atenção ao Airbnb em seu início. Mesmo empresas da Internet devem estar antenadas e terem capacidade de reagirem rápido às ameaças. O embate Facebook e Instagram versus o Snapchat (Facebook vs Snapchat vs Instagram: Which Is More Popular?) mostra que o desafio é constante e ameaças surgem mesmo para empresas inovadoras.
A revolução digital impõe mudanças significativas, como a revolução industrial ocasionou anteriormente. A industrial nos legou a eletrificação da sociedade, as atuais estruturas organizacionais, as especializações e os atuais setores de indústria. A digital começa a provocar a digitalização da sociedade, e as empresas têm que se preparar para essa mudança. As atuais defesas não serão barreiras intransponíveis. Os hotéis descobriram que investir e manter ativos (prédios) não foi suficiente para impedir o surgimento de um novo modelo, como o Airbnb mostrou na prática. Capital financeiro também não é garantia, pois aportes significativos podem alavancar uma startup. Regulação também é móvel, podendo ser mais lenta ou mais ágil em cada país, mas acaba se adaptando. O movimento dos agentes reguladores do sistema financeiro, com o Open Banking na Europa, provavelmente chegará ao Brasil em 2019, mostrando que a regulação tem se tornado mais dinâmica e aberta à competição, como já havíamos visto na questão do Uber. Marca sólida e reconhecida também não é trincheira intransponível. A Blackberry foi símbolo de status e hoje perdeu relevância. E, “clientes leais” se mostram muito menos leais. Os clientes dos táxis não eram “leais”, mas mostravam lealdade aparente por absoluta falta de opção. Hoje a terminologia já não é mais “vou pegar um táxi”, mas sim “vou pegar um Uber”.
O que fazer? Esteja um passo à frente do desmanche das fronteiras entre os setores. Não olhe apenas seus competidores diretos, mas observe atentamente aqueles que hoje estão em outros setores, ou mesmo startups que, aparentemente insignificantes, podem se tornar uma ameaça ao seu modelo de negócios em pouco tempo. Compreenda a essência da Transformação Digital e sua fórmula simples: digitalização → desmaterialização → desmonetização → democratização → disrupção.
Obtenha capacitação digital, e remapeie seus talentos para que a digitalização seja inserida no DNA da empresa. Seja um líder visionário, convença a empresa da urgência da digitalização, monitore de forma paranoica, potenciais invasores (startups e outros setores), crie suas próprias competências digitais e faça você mesmo o desmanche das fronteiras. Não espere ser desmanchado!
Texto feito por:
Cezar Taurion – Head of Digital Transformation & Economy at KICK Ventures & Angel Investor
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