Esse novo pensar é o desafio que está diante do quem quer se recuperar e para quem quer se construir um novo modelo de livraria como alternativa

A Livraria Saraiva entrou com pedido de recuperação judicial no dia 23 de novembro. A rede de varejo brasileira vende livros, eletrônicos, filmes e músicas, e chegou a citar a concorrência de serviços de streaming, como os oferecidos pelo Spotify e Netflix, no seu pedido feito à Justiça. Mais um capítulo da crise que afeta grandes livrarias.

A rede Laselva já teve sua falência decretada pela Justiça, com mais de R$ 100 milhões em dívidas. Depois a francesa Fnac fechou sua última unidade no país, na capital paulista, e saiu do Brasil em setembro. A Cultura assumiu as operações da Fnac no Brasil em troca de € 36 milhões, na ocasião, algo em torno de R$ 130 milhões. Para a Fnac, repassar esse dinheiro pareceu ser um bom negócio, pois o simples encerramento de suas operações no país poderia custar muito mais. Por outro lado, vemos outras redes, como a mineira Leitura, crescendo.

Estas movimentações mostram claramente que o mercado de livros terá de se reinventar. A culpa direta ou indireta seria da Amazon, segundo reclamam alguns empresários do setor. A Amazon chegou ao Brasil em 2014, vendendo apenas livros. Na época, livrarias se mobilizaram e procuraram ajuda do governo para limitar a sua atuação, alegando risco para o mercado. Levantou-se a possibilidade de criação de um preço único do livro, para impedir que a multinacional vendesse mais barato que suas concorrentes.

As tentativas de recuperação das livrarias não foram no sentido de se reinventarem, mas de tentarem mais do mesmo, como na insistência da aprovação da Lei do Preço Fixo, cuja maior finalidade é controlar os preços da indústria livreira. Este projeto, que tramita no Congresso (PL 49/2015), define que qualquer livraria, física ou virtual, só pode dar descontos de até 10% para publicações no primeiro ano após seu lançamento. A verdade é que, mesmo antes de a Amazon chegar ao Brasil, Saraiva e Cultura já praticavam descontos agressivos. Em muitos casos, os preços das lojas online eram mais convidativos do que os das lojas físicas.

Portanto, será mesmo que a crise é apenas decorrente da chegada da Amazon? Será que o problema está ligado ao produto em si, o livro, ou é mais decorrente de questões de gestão e visão das livrarias falidas?

Um artigo de 2017, “Crise nas livrarias: Insistindo no erro até encontrar o fracasso” dá algumas pistas. Pode ser lido aqui.

Os livros certamente não saem de moda, o mercado sempre se renova. Em pesquisa feita pelo Instituto Pró-Livro, ler é um hábito de 56% da população brasileira. A estratégia da Saraiva de abrir megastores e bater de frente com a Amazon em comércio eletrônico, sem investir em tecnologia de forma adequada, podem ser algumas das principais causas. Megastores em shoppings são pontos muito caros e os próprios shoppings estão em transformação, deixando de ser locais de compra para serem, cada vez mais, locais de entretenimento, “entertainment centers”, onde até será possível fazer compras.

No comércio eletrônico, todas as livrarias têm seus próprios sites, porém nenhum deles se iguala ao da Amazon em funcionalidades, uso de análise de dados e algoritmo de recomendações, além da logística e foco obsessivo no cliente. Em algumas livrarias a área de comércio eletrônico era separada da de lojas físicas, com gestão e prioridades próprias. Desconheciam, na prática, o modelo omnichannel.

Os ebooks também começaram a cair no gosto dos brasileiros. A própria Amazon tem o aparelho mais famoso do tipo, o Kindle, que permite carregar uma verdadeira biblioteca no bolso. Eu o uso para comprar 80% dos meus livros. A Saraiva lançou seu próprio ebook, o Lev, e a Cultura fez uma parceria com a Kobo, mas nenhum deles chegou nem de perto ao sucesso do Kindle. E, na prática, os leitores brasileiros que estão preferindo livros digitais aos físicos representam uma minoria dos consumidores.

Porque esta crise? Vamos primeiro entender a base econômica do  mercado de livros no Brasil. Depois que um livro sai da gráfica, normalmente em tiragens mínimas de alguns poucos milhares de exemplares, as editoras dedicam uma parte do estoque em regime de contratos de consignação à distribuidoras de livros em diferentes pontos do país, para que atendam as livrarias e pontos de vendas locais com estoques regionais. A editora estipula o preço de capa e os descontos para distribuidoras (aproximadamente 50%) e livrarias (aproximadamente 30%). O preço final do livro precisa considerar a remuneração desta divisão do trabalho, incluir os direitos de autor e, claro, a margem da editora. Via de regra, as grandes varejistas têm de 60 a 90 dias para pagar as editoras depois de faturada a venda. É um setor com graves sintomas de relacionamento. É um setor que claramente sinaliza estar propício à disrupção. Foi também uma confluência de fatores conflitantes, como venda de CDs com vinte músicas para quem queria comprar apenas uma que abriu caminho para a transformação do setor de música.

A Amazon revolucionou o sistema de logística dos livros, com negociações diretas com editoras e sistema internacional de envio. A empresa tem crescido no Brasil por, entre outras estratégias, comprar lotes de livros em vez de consigná-los, o que eventualmente a permite negociar valores e, assim, baixar preços. Desta forma ganhou grande capacidade de negociação com os fornecedores e, em consequência, capacidade de oferecer descontos maiores que os praticados normalmente. Expandiu-se para ser “a loja de tudo” e é uma das maiores empresas de tecnologia digital (AWS) e se tornou a principal referencial em e-commerce, como modelo de negócio,  só sendo ameaçada pela chinesa Alibaba. Aliás, recomendo a leitura do livro “A Loja de Tudo:  Jeff Bezos e a Era da Amazon“, de Stone Brad.

A Amazon, inconteste, provoca transformações radicais nos setores em que entra. Nos EUA, enquanto os consumidores optam por comprar no conforto de casa, os shopping centers e redes de varejo antes consolidadas fecham as portas. Alguns exemplos são a rede de brinquedos Toys R Us, que faliu, e a famosa rede de lojas de departamentos Sears, que chegou a ser a maior do mundo nos anos 1960 e recentemente recorreu à lei de falências dos Estados Unidos para tentar um suspiro final, com uma dívida de 5,6 bilhões de dólares.

A Amazon já começou a operação com livrarias físicas, a Amazon Books, mas com propostas bem diferentes das livrarias tradicionais. O artigo “What Do The Future of Bookstores Look Like? Amazon Just Showed Us (And It’s Awesome)”, que pode ser lido aqui, dá uma boa visão da experiência de compra na Amazon Books.

Aliás, as empresas de qualquer setor não são as inovadoras. Vejam que Skype e WhastApp não surgiram de dentro das operadoras de telecomunicações. Airbnb não veio do setor de hotelaria e Uber não surgiu de dentro da comunidade de taxistas. O iTunes e o Napster não surgiram das gravadoras! E, claro, a Amazon Store não veio da Saraiva ou Cultura.

Reinventar a livraria passa por repensá-la como um espaço cultural, com a lógica do encontro e da surpresa que a internet não pode proporcionar. Esse novo pensar é o desafio que está diante do quem quer se recuperar e para quem quer se construir um novo modelo de livraria como alternativa. O futuro das livrarias passa por explorar a “experiência do cliente”, criando modelos de lojas que precisam se concentrar em quatro conceitos que moldarão o futuro do varejo: curadoria (“menos é mais”), conveniência (“remover fricção das compras”), personalização (“experiência personalizada em massa” e foco obsessivo na experiência e atenção aos consumidores.

As livrarias precisam urgentemente se transformar por completo em sua cultura e modelos de negócios e gestão. É um desafio e tanto, mas essencial para sua sobrevivência empresarial. As empresas criadas sob paradigma do século 20 não sobreviverão da mesma forma no século 21.

 

Texto feito por:

Cezar Taurion – Head of Digital Transformation & Economy at KICK Ventures & Angel Investor